Tenho 21 anos de atuação na gestão de recursos hídricos, apenas um ano a mais da implantação da política nacional de recursos hídricos. Neste período de aprendizado, troca de experiências e conhecimentos, tive o privilégio de conviver com pessoas qualificadas, abnegadas e compromissadas com a causa. E, com certeza precisaria de um grande espaço para relacioná-las nesta singela homenagem. Permitam-me, então, reportar, neste momento, aos que fazem a atual diretoria da Agência Nacional de Águas, nas pessoas de Vicente Andreu (Diretor-Presidente), João Gilberto Lotufo, Paulo Varela, Ney Maranhão, Gisela Damm e Ricardo Medeiros, pela grande contribuição que deram a gestão dos recursos hídricos no Brasil, notadamente com o apoio da valorosa colaboração técnica da equipe que compõe essa Agência, dos órgãos gestores estaduais e dos colegiados (conselhos e comitês de bacias hidrográficas). Neste sentido, destaco entre as muitas ações desenvolvidas, àquelas que a meu ver tiveram maior impacto: Progestão, Capacitação para a gestão da água, Interáguas, Produtor de Água, Procomitês, Projeto Legado, Prodes, Monitor de Secas, Fórum Mundial da Água; como também total transparência de acesso as informações, estudos e publicação com destaque para o Atlas de Abastecimento de Água e o Atlas do Saneamento Básico, fortalecimento dos instrumentos de gestão da água, aprimoramento do monitoramento com a implantação das salas de situação, dos diálogos permanentes com os atores envolvidos na gestão de crise dos rios São Francisco, Paraíba do Sul e Tocantins, culminando com a imensurável contribuição para a gestão de risco a partir da proposta que dispõe sobre as condições para a operação do Sistema Hídrico do Rio São Francisco (grifo nosso), de grande relevância para gestão dos recursos hídricos do Brasil. Aos que chegam, aproveito o momento para deixar registrado alguns desafios: a) Incluir a comunicação, fiscalização e monitoramento como instrumentos de gestão; b) Integrar a gestão das águas superficiais com águas subterrâneas (irmãs siamesas) e as políticas setoriais; c) Estabelecer as vazões de entrega do rio São Francisco; d) Dar uma maior atenção a oferta da água, notadamente na preservação e recuperação das áreas de recarga dos nossos mananciais; e) Maior atenção nas bacias hidrográficas em crise recorrentes, minimizando o efeito nefasto da dupla dominialidade f) Aprimorar a governança com ampliação do diálogo permanente, entendendo GOVERNANÇA como uma nova geração de reformas administrativas e de Estado, que têm como objeto a ação conjunta, levada a efeito de forma eficaz, transparente e compartilhada, pelo Estado, pelas empresas e pela sociedade civil, visando uma solução inovadora dos problemas sociais e criando possibilidades e chances de um desenvolvimento futuro sustentável para todos os participantes; g) A participação dos municípios nos Conselhos Estaduais de Recursos Hídricos e nos Comitês de Bacia deve ser fortalecida, dado seu papel chave no uso e ocupação do solo, gestão de resíduos, licenciamento ambiental local e saneamento; h) Fortalecer institucionalmente os órgão gestores estaduais, entre outros. Com relação a este último item (h), chamo a atenção que a Carta Magna de 1988, conhecida por todos nós como cidadã e municipalista, fortaleceu os municípios (transferindo o ônus e não o bônus) que apresentam na sua quase totalidade baixa capacidade técnica e fragilizou os estados, que inclusive deixaram de planejar, transformando a gestão pública no Brasil num caos com tendência a piorar (aliás este modelo de pacto federativo é único no mundo), chegando a comprometer o funcionamento e o bom desempenho das agências reguladoras de serviços, com exceção daquelas agências que regulam o bem natural, a exemplo da ANA (água) e ANP (petróleo). Neste cenário, medida provisória está sendo preparada para que a ANA assuma a regulação dos serviços do saneamento básico, que sob o meu ponto de vista irá fragilizar a gestão dos recursos hídricos no nosso país, em detrimento da priorização da realização de força tarefa para equacionar o grande passivo daquele setor (saneamento básico), já que culturalmente temos uma tendência de acharmos que os nossos problemas são facilmente resolvidos pela engenharia civil (obras) em detrimento da governança (capital humano)?! Sabemos que o domínio público da água não transforma o Poder Público Federal e Estadual em proprietário da água, mas o torna gestor desse bem, no interesse de todos e que, descontinuidades nas lideranças e representantes de alto escalão em órgãos públicos, sejam eles federais ou estaduais e comitês, causam sérios danos a qualquer processo de reforço das instituições de gestão da água. Portanto aos que estão saindo, Vicente Andreu, João Gilberto Lotufo, Paulo Varela e Gisela Damm nossos parabéns e muito obrigado. Aos que ficam Ney Maranhão e Ricardo Medeiros, e aos que chegam boa sorte e sucesso, na esperança de que não devemos retroceder. Para isto devemos todos estar atentos e fortes, pois verás que um bom filho teu não foge à luta, BRASIL. Ailton Francisco da Rocha[1] [1] Engenheiro Agrônomo, Advogado, Escritor e Superintendente de Recursos Hídricos da SEMARH/SE.
Água: mentiras e verdades, artigo de João Ricardo Raiser
Segundo Joseph Goebbels, Ministro da Propaganda na Alemanha Nazista: “Uma mentira repetida mil vezes torna-se uma verdade.” Domingo, dia 1 de outubro, enquanto preparava o café da manhã, ouvia as chamadas de um programa de TV voltado para assuntos do campo. Entre as reportagens uma iria tratar da situação do principal afluente do rio São Francisco, o rio Paracatu (MG), que se encontra praticamente seco. Nos últimos tempos, muitas matérias tem tratado da crise hídrica pela qual passa a região central do Brasil, algumas inclusive como se fosse uma novidade, com repórteres, gráficos e especialistas apontando causas, efeitos e reflexos que são sentidos em todo o Brasil. Entre os problemas apontados estão sempre os ambientais, ligados à biodiversidade e peixes, ao usos da água, como abastecimento humano, irrigação, indústria, geração de energia, turismo, entre outros. Mas a reportagem sobre o Paracatu chamou-me atenção especial por acompanhar a história do amigo Antônio Eustáquio, o Tonhão, do Movimento Verde Paracatu, que há muito fala e trata da agonia do rio Paracatu, diretamente ligada à situação e condição de toda a bacia do Velho Chico. A reportagem, composta por entrevistas com representantes de vários setores, realizadas até no leito ressequido e magoado do rio, abordou as variações do ciclo hidrológico, as redução das precipitações nos últimos anos, os problemas de uso e ocupação do solo, a dificuldade de infiltração da água na terra, seu principal reservatório, os impactos no ambiente, produção o economia, a articulação e contribuições dos produtores rurais e da sociedade. Em determinado momento foram questionadas as ausências ou falhas na gestão das águas, política pública que permeia, ou deveria permear, grande parte destas questões, não somente para evitá-las, mas também para remediar seus impactos, desde que fosse implementada da forma prevista e tivesse capacidade de atuação. Crendo que o tema é relevante e de impacto nacional, divulguei a notícia a alguns grupos de amigos, colegas de trabalho e de estudo. Após a sua conclusão da reportagem, copiei aos mesmos grupos o endereço de acesso a ela. Não sei se por ímpeto, ou por estar coando o café, não percebi que um amigo já havia encaminhado o link de acesso a um dos grupos, e então pedi desculpas pelo ocorrido. O que gerou a vontade de contar esta história e refletir sobre ela, começa aqui. Após o pedido de desculpas pela redundância da mensagem, outro amigo, um entusiasta das águas, pesquisador e coordenador de um Mestrado Nacional em Gestão e Regulação de Recursos Hídricos, reagiu de forma enfática: “-Não há que pedir desculpas. Temos que repetir isso 1 milhão de vezes! O Velho Chico perece e nada é feito!” Imediatamente lembrei da frase de Goebbles, e veio a pergunta: quantas vezes essa verdade precisa ser repetida para que valha? Para que se converta em realidade? Quando eu, você, eles, nós, seja lá qual for nossa ocupação, interesse ou responsabilidade, sejamos produtores rurais, irrigantes, industriais, lavadeiras, pescadores, funcionários de empresas de saneamento, de geração de energia, estudantes, professores, servidores públicos, ou mesmo cidadãos, vamos tomar esta decisão? Sim, decisão! Tomar a decisão e cobrar que a água seja tratada como ela precisa, ou melhor, como nós precisamos que ela seja tratada, pois nós é que dependemos dela. Seja qual for o meu ou o seu interesse ou responsabilidade, seja como produtor rural, industrial, pescador, serviço de saneamento, empresas de geração de energia, estudante, professor, ou mesmo cidadão, todos tem parte na decisão de tratar da água como ela precisa, ou melhor, como nós precisamos, pois nós é que dependemos dela. É uma decisão. Quer exemplos? Em 1800, Nova York enfrentou problemas ligados à água, com mortes, doenças e prejuízos, e decidiu cuidar de suas fontes, suas bacias hidrográficas. Alguns especialistas acreditam que sem essa segurança hídrica, talvez a cidade não fosse que é hoje. Em 1861, no Rio de Janeiro, Dom Pedro II criou uma “Floresta Protetora”, visando recuperar as bacias que davam suporte ao abastecimento, da degradação ocorrida entre 1600 e 1700, atual Parque Nacional da Tijuca. E nós, quando acolheremos esta realidade e daremos resposta efetiva ao que são fatos, não mais meras especulações ou alarmismos. Os recursos são escassos, e há muitas preocupações e questões que requerem especial atenção da sociedade, como o famoso tripé “saúde-educação-segurança”, mas a disponibilidade hídrica, ou segurança hídrica, apresenta reflexos diretos inclusive nestes eixos, ao afetar a saúde e o desenvolvimento econômico e social, tanto no curto, quanto no médio e longo prazo. Quando daremos atenção à gestão das águas e políticas públicas relacionadas? Precisamos repensar, mudar a forma de agir, e estes esforços devem ser de todos que tem interesse ou são impactados pela água, seja por seu uso ou por sua falta. Esta verdade não pode esperar ser repetida 1 milhão de vezes para se tornar realidade, sob pena de inviabilizarmos a nossa própria sobrevivência e atividades. João Ricardo Raiser. Poeta. Administrador. Mestrando em Gestão e Regulação de Recursos Hídricos (PROFÁGUA), na UNESP – Ilha Solteira, membro de Comitês de Bacia Hidrográficas Federais e Estaduais, representante no Conselho Nacional de Recursos Hídricos. Gerente de Planejamento e Apoio ao Sistema de Gestão de Recursos Hídricos da SECIMA/GO. Atua na gestão das águas desde 2002. jrrgestor@gmail.com
LICENCIAMENTO AMBIENTAL: AMEAÇA À GESTÃO INTEGRADA DA ÁGUA*
O Projeto de Lei que cria a Lei Geral do Licenciamento Ambiental (PL 3729/04) ameaça a gestão integrada da água no Brasil. O texto, que está na 13ª versão, foi retirado da pauta da Comissão de Finanças e Tributação (CFT) pelo relator, deputado federal Mauro Pereira (PMDB-RS) e deve ir direto para o Plenário da Câmara dos Deputados em regime de urgência, sem discussão na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ). A 12ª versão do substitutivo que estava na pauta da CFT foi retirada pelo autor após nova rodada de negociação entre deputados e os ministérios de Meio Ambiente, Agricultura e Casa Civil. Essa tentativa de acordo resultou na retirada de pontos polêmicos que flexibilizavam o licenciamento ambiental para empreendimentos rodoviários, ferroviários e de energia elétrica. Entretanto, os artigos que afetam diretamente a gestão de recursos hídricos, como o que desvincula a outorga de direito de uso da água do processo de licenciamento, permanece no texto. Embora considere a outorga de direito de uso da água ato administrativo desvinculante do processo de análise para licenciamento, o texto fixa prazo para que autorizações ou outorgas à cargo de órgão ou entidade integrante do Sistema Nacional de Meio Ambiente (Sisnama) para que sejam emitidas previamente ou concomitantemente à licença, respeitados os prazos máximos previstos na nova lei. O texto ainda mantem várias concessões setoriais, com dispensa de licenciamento à agricultura, hidroelétricas, mineração e a obras de infraestrutura. Desde junho do ano passado a SOS Mata Atlântica tem atuado em conjunto com o Ministério do Meio Ambiente na construção de um Projeto de Lei de consenso, que permita resolver os problemas decorrentes da falta de estrutura dos órgãos ambientais, do excesso de burocracia e da precariedade técnica dos projetos submetidos à análise ambiental e que, fundamentalmente, não traga retrocessos à legislação ambiental brasileira. As negociações envolveram deputados federais das Frentes Parlamentares Ambientalista e do Agronegócio, ministérios, representantes dos setores produtivos, de infraestrutura, organizações ambientalistas, associações nacionais de municípios, de órgãos estaduais e do Ministério Público. Em 4 de abril o Ibama fechou a minuta negociada com todos esses setores. Essa versão define regras gerais sobre o rito e a forma dos processos de licenciamento, envolvendo com base nas competências, os entes da Federação e o Sisnama. Também fixa prazos e inova ao incluir a Avaliação Ambiental Estratégica e mecanismos de transparência e participação da sociedade. Embora contemple dispensa de licenciamento ambiental às atividades agrossilvopastoris, vincula a provável dispensa ao cumprimento de outras Leis e instrumentos vigentes, como a Lei da Mata Atlântica, o Código Florestal e o Cadastro Ambiental Rural (CAR). Essa versão evita graves retrocessos e judicializações, minimiza pressões setoriais e, apesar de não ser o texto ideal, por não resolver o problema de falta de estrutura e autonomia dos órgãos ambientais para conduzir de forma ágil e eficaz os processos de licenciamento ambiental, apresenta regras gerais capazes de harmonizar procedimentos, rito, competências e prazos. Esse texto de consenso deveria ser enviado para votação na Câmara Federal na forma de um novo substitutivo de plenário para regime de urgência, e não o texto que foi apresentado pelo deputado Mauro Pereira. O posicionamento e a estratégica de advocacy adotados pela SOS Mata Atlântica tem resultado, há quatro meses, na não votação do substitutivo defendido pela Frente Parlamentar do Agronegócio e Casa Civil. O licenciamento ambiental é um instrumento estratégico de planejamento que garante à sociedade a transparência e a participação na tomada de decisões para obras, empreendimentos ou atividades econômicas que visem ser implementadas ou regularizadas no país, bem como a conservação de patrimônios naturais, da biodiversidade e de ecossistemas essenciais para a regulação da água e do clima. Portanto, repudiamos a votação de um texto unilateral, desconhecido da sociedade e cobramos que o Governo Federal se posicionasse em defesa da proposta de consenso construída no Ministério do Meio Ambiente, reafirmando os compromissos internacionais que assumiu perante o Acordo de Paris sobre Mudanças do Clima e os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável. Reforçamos que flexibilizar o licenciamento ambiental para favorecer setores pontuais traz enormes prejuízos à sociedade e ao ambiente no Brasil e acaba com a oportunidade de construir uma proposta capaz de transformar o licenciamento ambiental em um instrumento ágil e moderno, que equilibre desenvolvimento e sustentabilidade. *Malu Ribeiro é especialista em Água da Fundação SOS Mata Atlântica, ONG brasileira que desenvolve projetos e campanhas em defesa das Florestas, do Mar e da qualidade de vida nas Cidades. Saiba como apoiar as ações da Fundação em www.sosma.org.br/apoie .
É PRECISO FORTALECER OS INSTRUMENTOS DA POLÍTICA NACIONAL DE RECURSOS HÍDRICOS*
A água tem uma série de implicações no cotidiano da vida das pessoas. Além de recurso natural, é também fonte indispensável para a vida humana e animal, bem como matéria-prima para uma série de atividades, como agricultura e indústrias. As condições de existência da água impactam diretamente áreas essenciais para o bem estar social, saúde, moradia, emprego e até mesmo lazer. Por conta dessa realidade, a legislação brasileira conta com uma política específica que versa sobre os recursos hídricos, a Lei Federal nº 9.433 de 1997. A Política Nacional de Recursos Hídricos (PNRH), que esse ano completou 20 anos de existência, sabiamente estabeleceu como primeiro fundamento o fato de a água ser um bem de domínio público, um recurso natural limitado e que, portanto, merece atenção e parcimônia nos modos como tratamos e impactamos suas condições naturais. Essa legislação representa o principal alicerce do Observatório da Governança das Águas (OGA), movimento multissetorial que tem como missão gerar, sistematizar e difundir informações a respeito do funcionamento do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos (Singreh). Entre os objetivos do OGA está exatamente a necessidade de promover a integração da gestão dos recursos hídricos com as demais políticas setoriais, de meio ambiente, saneamento, mudanças climáticas, saúde e outras. O Singreh é um dos instrumentos que compõe o arcabouço institucional da PNRH, juntamente com os planos de recursos hídricos, o enquadramento dos corpos de água, a outorga dos direitos de uso, a cobrança pelo uso e a compensação aos municípios (art. 5º). Todos esses instrumentos têm uma importância singular para o zelo das boas condições dos nossos recursos hídricos. Este artigo trata especificamente da outorga. Esse instrumento da PNRH é um ato administrativo que dá a alguém o direito de utilizar os recursos hídricos, que são de domínio público, considerando o principio fundamental assegurado na legislação do uso múltiplo das águas. Ou seja, a outorga não dá o direito de propriedade e, ao mesmo tempo, observa os diversos interesses existentes para o uso da água (agricultura e abastecimento público, por exemplo) e os equaliza. Apesar de seu potencial enorme de orientar ações para que sejam asseguradas as características de quantidade e qualidade dos corpos hídricos, conforme previsto na PNRH, o diagnóstico do cenário brasileiro não é muito animador, tanto em termos de efetividade da implementação quanto em relação ao conteúdo das outorgas emitidas. Em termos quantitativos o último “Relatório de Cojuntura dos Recursos Hídricos” publicado pela Agência Nacional de Águas (ANA) em 2016 indica a existência de cerca de 5 mil outorgas vigentes no Brasil. São mais de 4.800 m³/s de vazão outorgada em todo território nacional, considerando tanto rios de domínio federal quanto estadual. Considerando o aspecto qualitativo desses atos administrativos, é possível identificar uma ausência do cumprimento dos objetivos previstos na PNRH, uma vez que a outorga é majoritariamente um documento burocrático que prevê simplesmente a quantidade de água que pode ser retirada. As considerações em termos das necessidades ecossistêmicas que devem ser garantidas para que a água continue sendo produzida em qualidade e quantidade adequada simplesmente não são incorporadas no ato de outorga. Em outras palavras, aquele que recebe o direito de utilizar esse bem público não precisa oferecer nenhuma contrapartida em termos de proteger e recuperar as áreas onde capta as águas. Felizmente, os últimos acontecimentos apontam para a direção certa. Em maio de 2017, a ANA e o Departamento de Águas e Energia Elétrica (DAEE) emitiram a renovação da outorga do sistema Cantareira à Sabesp. A companhia estadual de saneamento detém o direito de uso das águas do Cantareira desde 1974 (um ano depois da fundação da empresa), sendo renovada em 2004. Atualmente, com a nova outorga emitida este ano, a empresa tem o direito de uso assegurado até o ano de 2027. A novidade mais relevante que resultou desse processo que se alongou por cerca de três anos (a outorga deveria ter sido renovada em 2014, uma vez que a outorga de 2004 tinha vigência de 10 anos) está na inclusão, pela primeira vez no Brasil, de uma condicionante ambiental. ANA e DAEE estabeleceram a obrigação de a Sabesp realizar ações que reduzam a erosão e o assoreamento dos mananciais que alimentam o sistema Cantareira, gerando, portanto, impactos positivos na infiltração de água de chuva. Para o leitor, pode parecer obvia tal determinação, sobretudo para um sistema como o Cantareira, responsável pelo abastecimento de mais de 7 milhões de pessoas e com mais de 52 mil hectares com alta fragilidade ambiental[1]. Entretanto, essa é uma novidade relevante no cenário nacional dos recursos hídricos que merece ser reconhecida, acompanhada e exigida sua implementação. Ainda que o conteúdo dessa condicionante seja extremamente importante, o desafio atualmente é verificar como o outorgado pretende cumprir a condicionante, como os órgãos outorgantes estão organizados para fiscalizar o cumprimento dessa e das demais condicionantes e quais os instrumentos que podem viabilizar ações de proteção e recuperação desses mananciais. Nesse sentido, o OGA tem o papel fundamental de acompanhar e emitir os alertas necessários a respeito do cumprimento de todas as diretrizes presentes na outorga do Cantareira à Sabesp. Mais do que isso, caso o “figurino” previsto no documento seja cumprido e, conforme desejamos, a condicionante ambiental seja cumprida e aumente consequentemente a segurança hídrica desse manancial, o OGA tem como dever exportar os aprendizados desse caso para os demais rincões do Brasil. Esse artigo tratou especificamente da outorga, mas os demais instrumentos também merecem atenção do OGA, como por exemplo, o enquadramento. O fato de existir rios de classe 4, a mais baixa em termos de qualidade da água, em outras palavras, transformando os rios em esgotos a céu aberto, é um absurdo que a sociedade brasileira deve combater. Nesse e em demais casos, o alicerce do trabalho do OGA não é somente a PNRH, mas, sobretudo a própria Constituição Federal que prevê: “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida (…)” (art. 225). Todos os instrumentos da PNRH
UM REMÉDIO AMARGO NO DOCE
Um remédio amargo no Doce Próximo ao 8º Fórum Mundial das Águas, a se realizar em 2018 no Brasil, o balanço sobre os 20 anos da instituição da Política Nacional de Recursos Hídricos (PNRH), Lei 9.433/1997, contabiliza o saldo positivo de ter estabelecido o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos (SINGREH), seus instrumentos de gestão e respectivas instâncias deliberativas e executivas. Entretanto, o recente rompimento da barragem de rejeitos minerários em Mariana, Minas Gerais, nos proporciona um meio para avaliar se o modelo de gestão está devidamente consolidado e apto a exercer sua função dentro da governança hídrica no país. O SINGREH permite que a gestão dos recursos hídricos seja descentralizada ao estabelecer o comitê de bacias, órgão consultivo e deliberativo, vinculado ao poder público e subordinado ao Conselho Nacional de Recursos Hídricos (CNRH), como uma estrutura tripartite – em que usuários de águas e sociedade civil compartilham a decisão com o poder público. As deliberações são executadas por Agências de Bacias Hidrográficas ou entidades equiparadas (Lei 10.881/2004), que apoiam técnica e administrativamente o sistema. Embora esse atual modelo seja um avanço, por permitir a participação direta das partes envolvidas e interessadas na gestão dos recursos hídricos, na prática, a efetividade dos comitês ainda encontra obstáculos. A natureza multisetorial do Comitê, apesar de conferir legitimidade às decisões territoriais, incorpora grande complexidade ao processo de gestão e o incapacita à tomada de decisões rápidas, necessárias em situações críticas. Esta complexidade é ainda aumentada pela característica excessivamente generalista dos Planos de Bacias e da chamada dupla dominialidade, definida pela gestão hídrica compartilhada entre a União, que gere os rios interestaduais, e os estados, gerindo os rios internos. Por outro lado, temos já uma consolidação de Comitês que possuem experiências relevantes de práticas de governança multinível, em que os diversos setores procuram identificar a convergência de interesses e capacidades distintos para alavancar as ações projetadas pelos Planos de Bacias. Os esforços são centrados na busca por sinergias entre os investimentos setoriais e os programas coordenados pelos Comitês, por meio da alocação dos recursos da cobrança pelo uso de água. Em que pese a necessidade urgente de aprimoramento desse instrumento de gestão, a presença de uma entidade com legitimidade instituída pela PNRH e com capacidade de investimento é uma peça valiosa para o fortalecimento de uma forma de governabilidade territorial descentralizada. Em novembro de 2015, o já degradado rio Doce viveu um dos maiores desastres ambientais do país, pondo a prova o sistema de gestão. Face à dimensão do dano, as reparações e compensações a serem realizadas pelos responsáveis foram negociadas e acordadas entre as empresas e poder público, por meio de um Termo de Transação de Ajustamento de Conduta (TTAC). Em relação à gestão do processo de recuperação ambiental, muito embora a bacia já possua todas estruturas do SINGERH implantadas e consolidadas, a solução encontrada foi de criar uma nova estrutura de governança centrada em um Comitê Interfederativo (CIF), composto por instituições governamentais. Muito semelhante a já existente, trata-se de uma estrutura transitória que surgiu impositivamente no calor de um grave acidente, e que não prevê a participação social defendida pelos comitês. Em outras palavras, trata-se de um comitê ad hoc, que compõe a estrutura do SINGREH e que pode ser visto como um bypass no sistema vigente. O intuito aqui não é lançar críticas e, sim, fomentar uma reflexão mais profunda e democrática sobre a criação de uma esfera de governança, não prevista no SINGREH, para gerir ações sobrepostas ou inerentes aos planos de bacias. Nessa perspectiva, o CIF pode ser visto como um remédio amargo mas necessário, justificado por uma crise aguda e intensificada pela demanda social por respostas. Tal desvio estabelece um conflito com um dos principais fundamentos da PNRH: descentralizar e compartilhar a gestão dos recursos hídricos. O CIF não é uma câmara de mediação ou arbitragem, o que seria uma ideia válida, mas, sim, um fórum governamental provisório, cuja finalidade é gerenciar a recuperação ambiental, incluindo ações não emergenciais sobrepostas às previstas no Plano de Bacias. Aplicada no momento da crise instalada, essa nova instância reflete as deficiências do SINGREH de agir prontamente em um cenário de crise aguda. A relação entre as estruturas do SINGERH e o CIF poderá ser harmoniosa ou combativa, a depender dos contornos dados à condução da nova instituição. Algumas hipóteses podem ser cogitadas: o SINGREH e os defensores dessa estrutura preexistente resistirão ao bypass; com apoio crescente a esse desvio, o Sistema cede e desaparece, angariando mais funções ao CIF; o SINGREH supera suas ineficiências, ocorrendo uma divisão de competências, e ambas as instituições são mantidas. Nesse contexto, é preciso reconhecer e abordar a verdadeira causa da doença do Doce e outros rios brasileiros. Independente do remédio, o fato é que as bacias dependem de uma articulação mais ampla e soluções definitivas para antigas questões, como a falta de saneamento básico. É fundamental promover o aprimoramento urgente dos instrumentos legais e de gestão, principalmente em relação aos Planos de Bacias, para que os Comitês tenham a capacidade de subsidiar os órgãos executivos e reguladores com arcabouços normativos robustos. Mesmo que um caminho seja mais fácil no curto prazo, é preciso atenção aos efeitos imprevistos que podem acarretar. Vale lembrar que o SINGREH se fortalece em números. Hoje são mais de 200 comitês de bacias no país, o que significa centenas de cidadãos participando diretamente da gestão de recursos hídricos. O sistema conta com a Agência Nacional das Águas (ANA), altamente capacitada a dar um suporte nas principais ações dessa temática. Assim, o cerne da preocupação está na possibilidade de que as decisões sejam tomadas sem a devida apreciação e apoio da sociedade, porém, toleradas por uma necessidade casuística e transitória. Talvez, o melhor posicionamento seja o de promover mudanças que fortaleçam o sistema já existente. Eduardo Figueiredo Diretor-presidente do IBIO O IBIO atua como entidade delegatária com funções de agência de águas dos Comitês da Bacia Hidrográfica do Rio Doce Márcio Pereira Sócio do SVMFA
SER OU NÃO SER? A GESTÃO DESCENTRALIZADA E PARTICIPATIVA DAS ÁGUAS NO RIO DE JANEIRO!
Ser ou Não Ser? a gestão descentralizada e participativa das águas no Rio de Janeiro!* Criada, em oito de janeiro de 1997, a lei nacional de gerenciamento de recursos hídricos, nossa Lei das Águas, completa, em 2017, 20 anos. Próxima de sua maioridade, nossa lei deveria receber os parabéns. Mas será que está merecendo?! Outra lei recente, a estadual das águas do Rio de Janeiro seguiu os passos e diretrizes da lei federal. Criada em 1999, lá se vão 18 anos. As duas leis trouxeram, em seu cerne, uma nova forma de gerir a água, a descentralização e participação. Seus instrumentos são inovadores como, por exemplo, a cobrança pelo uso da água bruta, o plano de bacia, o sistema de informação, o enquadramento, a outorga, o sistema de informação e, acima de tudo, a obrigatoriedade do controle social, por meio da tomada de decisão coletiva na implementação desses instrumentos e na aplicação dos recursos da cobrança na própria bacia de origem. Também criou instâncias colegiadas com poder deliberativo nos níveis federal, o CNRH – Conselho Nacional de Recursos Hídricos, estadual, o CERHI – Conselho Estadual de Recursos Hídricos e por bacia hidrográfica Comitês de Bacia Hidrográfica. Vale destacar que o Estado do Rio de Janeiro teve o instrumento da cobrança pelo uso da água bruta aprovada em 2003 e a totalidade de seu território já conta com seus comitês de bacia instalados, são nove. E podemos dizer ainda que com suas delegatárias de funções de agência de água funcionando a pleno vapor… ou melhor dizendo, quase a pleno vapor! Pois é, aí recordamos a máxima “ser ou não ser”, essa dualidade permanente e paralisante do processo decisório participativo que acontece atualmente no Rio de Janeiro. Ora, vejam, se temos a cobrança pelo uso da água efetivamente implementada desde 2003 e logo os recursos repassados para as subcontas do FUNDRHI – Fundo Estadual de Recursos Hídricos, de acordo com sua região hidrográfica de origem e aplicados de acordo com deliberação dos comitês de bacia, conforme preconizado na lei, o que acontece hoje que não nos permite “ser gestão descentralizada” na completude da lei? Vejamos o princípio das coisas: originalmente tanto a lei federal quanto a estadual de recursos hídricos citam, em seus artigos, a criação das agências de água, cujo papel principal é ser o braço executivo dos comitês de bacia, um corpo técnico e administrativo, que faria a gestão técnica e financeira das ações e atividades aprovadas pelo comitê de bacia. Os comitês são compostos por usuários da água bruta, poder público e sociedade civil organizada, eles deliberam coletivamente, e a agência de água deve propor e executar as ações e programas em sintonia com os instrumentos preconizados na lei estabelecendo parcerias diversas com universidades, administração pública, usuários de água, comunidades locais e por meio de contratos licitados. Um desenho inovador de fazer gestão com participação social. Então, para refletir sobre “o como fazer” esse novo modelo de gestão funcionar, e com um olhar um pouco mais aprofundado, deve se observar o que está posto no artigo no. 43, inciso II (Lei Federal 9.433): “a criação da agência está condicionada a viabilidade financeira assegurada pela cobrança pelo uso da água” e no seu art. 44, inciso III: “efetuar, mediante delegação do outorgante, a cobrança pelo uso de recursos hídricos”. Entendemos que a criação das entidades delegatárias de funções de agência de água teve sua origem no fato de que, no Brasil nenhuma entidade, que não seja pública, poderia emitir o boleto de cobrança diretamente para o usuário ou seja, cobrar tarifa pública, se pudesse evitaria que o recurso tramitasse pelo caixa único do estado. No entanto, no caso da cobrança em rios de domínio da União, os recursos vão para uma conta específica (por bacia) e não podem ser contingenciados, devendo voltar integralmente através de investimentos na recuperação ambiental na bacia de origem, e na forma dos contratos de gestão e outros mecanismos. A iniciativa de criação das delegatárias, nos moldes da União, no estado do Rio de Janeiro pareceu ser uma boa solução em 2010 através de contratos (questionáveis) de gestão, entre delegatárias e órgão gestor de meio ambiente, foram firmados, apesar de notadamente frágeis. A gestão participativa das águas fluminenses seguiu em frente como modelo para o resto do país, porém, nos últimos anos, paralisaram-se os repasses financeiros quase na sua totalidade e por questões adversas aos comitês. Sem dúvida com a justificativa na crise econômico-financeira em que se encontra o Estado do Rio de Janeiro. Em meio a tais questões, sem negociação formal qualquer e sem a transparência devida, um processo junto ao Ministério Público Estadual foi aberto contra o Estado em busca de respostas, soluções e, mais importante, no sentido de preservar a política das águas e a autonomia dos comitês, conforme preconiza a lei. Assim, sem receber a totalidade dos recursos, as delegatárias apenas se mantêm com o mínimo para funcionar como secretaria executiva dos comitês, mas de mãos atadas para prosseguir nas contratações das ações de recuperação ambiental e de gestão hídrica aprovadas por estes. Hoje se sabe que os recursos que haviam se transferido para o caixa único finalmente foram repassados pela Secretaria Estadual de Fazenda ao órgão gestor ambiental do Estado mas, ali se encontra estacionado e um TAC (Termo de Ajuste de Conduta) está sendo proposto para devolver os recursos contingenciados anteriormente aos comitês – claro que em muitas parcelas. Arrisca-se pensar que só a pressão dos processos no MP estadual poderá liberar os recursos financeiros aos comitês de bacia, seus gestores legítimos e legais. Sem desconsiderar a importância de se ter um órgão estadual gestor de águas funcionando adequadamente, talvez até com apoio dos recursos da cobrança, a pergunta que fica é: por que não foi negociado com os comitês o uso destes recursos antecipadamente ao arresto pelo Estado? E quem garante o repasse das parcelas caso, um acordo nesse sentido venha a ser pactuado? Não seria a criação da figura administrativa da entidade delegatária de algumas funções de
O USO SUSTENTÁVEL DA ÁGUA
O USO SUSTENTÁVEL DA ÁGUA As Nações Unidas classificaram os países membros em seis categorias quanto a disponibilidade média de água per capita, sendo que o Brasil foi considerado como um país rico em água. Como nosso país é eminentemente formado por rios, com raros lagos verdadeiros e naturais, o Ministério do Meio Ambiente dividiu o país em 12 regiões hidrográficas, sendo que as principais nascentes dos rios que formam as regiões hidrográficas Amazônica, Paraguai e Tocantins-Araguaia estão, em sua maioria, situadas em Mato Grosso, entre os biomas de floresta amazônica, cerrado (savana) e o Pantanal. Estas nascentes fluem tanto para o norte-nordeste como para o sul. Para o norte, formam os principais afluentes da margem direita do rio Amazonas, como o Xingu e o Tapajós, e o rio Araguaia e afluentes, em direção nordeste. Para o sul, formam os rios Paraguai e seus principais tributários, que fluem para a maior planície alagável contínua do mundo, o Pantanal Mato-grossense, localizada nos estados de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. O conhecimento existente sobre os rios de Mato Grosso, especialmente das regiões hidrográficas Amazônica e Araguaia-Tocantins, ainda é escasso. Existem mais estudos e levantamentos na região hidrográfica do Paraguai, cuja ocupação pós-indígena historicamente é a mais antiga e cujo território concentra a maior parte da população do Estado, o que inclui os mais antigos centros de pesquisas e universidades e a existência de usos da água mais diversificados e conflitantes. Historicamente construímos cidades e plantamos onde existe água e nesta região do Brasil não seria diferente. Tanto no passado, quanto nos dias atuais, a água superficial nos rios e córregos destas três regiões hidrográficas e os mananciais subterrâneos interligados desempenham funções que sustentam a economia e as populações locais, tratando-se de um recurso estratégico e de vital importância para o Estado, mas que raramente é reconhecido como tal. Ao mesmo tempo que é um privilégio ter uma rica e densa rede de drenagem em nosso território, também é uma grande responsabilidade no que se refere a garantir que a água seja concomitantemente utilizada e conservada pelas gerações atuais e futuras, ou seja, que tenha um uso sustentável. O conceito de sustentabilidade aplicável aos recursos hídricos está diretamente relacionado a conservação dos ecossistemas aquáticos, única forma de garantir água em quantidade e em qualidade aos diversos usos que fazemos nas atividades humanas. Inclusive a sustentabilidade do agronegócio no Estado de Mato Grosso está diretamente relacionada à utilização de práticas ambientalmente adequadas, nas áreas destinadas a essa finalidade. Daí a necessidade de enfatizar que a adoção de práticas sustentáveis de produção é um dos caminhos a percorrer, não apenas para a proteção da natureza, mas também e, principalmente, com vistas à conservação de dois elementos fundamentais para essa atividade: água e solo, conforme mencionado no Plano Estadual de Recursos Hídricos elaborado pela Secretaria Estadual de Meio Ambiente (2009). Eis o desafio para Mato Grosso: administrar os atuais usos da água nas diferentes atividades humanas, que se desenvolvem e aumentam quase que continuamente, e planejar os usos futuros, conciliando com a conservação dos ecossistemas aquáticos. Inspirado no princípio essencial de que não é possível realizar uma gestão e um planejamento sustentáveis da água sem conhecimento e que este conhecimento deve ser difundido para que mais pessoas participem e atuem como profissionais, foi criado o Programa de Pós-Graduação em Recursos Hídricos da Universidade Federal de Mato Grosso. Em quase 10 anos de existência, 123 mestrandos foram formados desenvolvendo trabalhos nas principais áreas e projetos desenvolvidos pelo programa: monitoramento de quantidade e qualidade da água superficial e subterrânea, hidrogeologia, hidrologia e hidrossedimentologia, organismos aquáticos e bioindicadores, técnicas de reuso, controle e tratamento de água e esgoto, avaliação de impactos ambientais de obras hidráulicas, educação ambiental, gestão e planejamento dos recursos hídricos, entre outras áreas afins. Destes formandos, 45% atuam em diversas instituições públicas e privadas de ensino superior, técnico, médio e fundamental, 20% em secretarias de meio ambiente, 9% em consultoria ambiental e os demais atuam em diversas empresas públicas, privadas e do terceiro setor ligadas as áreas de saneamento, indústria, turismo e saúde. Além da formação de profissionais, o desenvolvimento de projetos nestas diferentes subáreas subsidia ações dos gestores públicos e privados e estudos de pesquisa acadêmica, alçando este Programa de Pós-Graduação em revistas científicas nacionais e internacionais. O papel social, ambiental e econômico dos profissionais que atuam em recursos hídricos, deve portanto, ser sempre pautado pelo uso sustentável da água, conhecendo as condições e problemas atuais, buscando soluções e planejando o futuro, para que as gerações atuais e futuras tenham água em quantidade e em qualidade adequadas aos diferentes usos múltiplos da água nas várias atividades humanas. * DANIELA MAIMONI DE FIGUEIREDO (Professora colaboradora do PPGRH/UFMT – Capes/PNPD) * EDUARDO BERALDO MORAIS (Coordenador e professor do PPGRH-UFMT) * ZORAIDY MARQUES DE LIMA (Professora do PPGRH-UFMT) ascom@ufmt.br
A Governança das Águas e o Enquadramento dos corpos d´água – o caso da bacia hidrográfica do rio Tibagi
A Governança das Águas e o Enquadramento dos corpos d´água- o caso da bacia hidrográfica do rio Tibagi. Um dos aspectos fundamentais para avaliar e aferir a efetiva governança das águas pode ser a forma de implementação dos instrumentos de gestão dos recursos hídricos em uma determinada bacia hidrográfica, com a efetiva participação do comitê da bacia hidrográfica. Essa implementação quando realizada de forma participativa, transparente e com a total compreensão de todas as instâncias da gestão das águas, talvez estejamos no caminho correto de falar em GOVERNANÇA. Entre estes instrumentos, o enquadramento dos corpos de água previsto na Lei 9.433/97 e nas leis estaduais de recursos hídricos, é um dos mais complexos e de difícil implementação, tanto por aspectos técnicos, sociais como econômicos, o que reflete a incipiência de sua aplicação em somente algumas bacias. Os Comitês de Bacias Hidrográficas como estão previstos na legislação, tem função preponderante em exercer e exigir uma boa governança, sobretudo quando tratamos de classificar os córregos, rios e lagos, em outra palavras garantir que a água tenha qualidade e proporcione os usos múltiplos. O ENQUADRAMENTO significa dar o destino a um determinado curso de água, se o queremos verdadeiramente vivo ou morto, se desejamos que se exerça o fundamento de uso múltiplo ou uso restrito a algumas atividades. Definir o tema governança da água pode ser verificado de distintos pontos de vista, contudo em todos deve compreender o de regular as relações complexas entre grupos diversos e através de critérios da equidade, acessibilidade e sustentabilidade. Desta forma, mesmo sendo difícil de compreensão, o enquadramento, precisa mais do que outros instrumentos de gestão, ser efetivado aplicando o conceito e prática da GOVERNANÇA. Se tratando de um bem comum de todos os seres vivos, a GOVERNANÇA deve promover a participação ativa que inclua os diferentes atores sociais nas decisões, com múltiplas cultura, saberes e instrumentos normativos formais e não formais, nas diferentes escalas e nos contextos sócio politicas, econômicos e ecológicos A respeito dessa complexidade, no Paraná aconteceu recentemente uma experiência que pode ser mencionada como contribuição à melhoria da governança das águas envolvendo o enquadramento. O rio Tibagi e sua bacia hidrográfica tem se caraterizado pelo pioneirismo em matéria de gestão das águas: em 1988 foi o criado o primeiro consorcio intermunicipal de bacias hidrográfica formado no país, adotando a experiência do Rio Jacupiranga/SP. Foram anos de debates, mobilização da sociedade e dos municípios. Assim se formou o COPATI – Consórcio Intermunicipal para a Proteção Ambiental da Bacia Hidrográfica do Rio Tibagi. Esse legado têm permitido ao longo dos anos que essa bacia e sua sociedade se antecipe aos bons debates sobre a gestão das águas, período em que se debatia o projeto de lei que resultou n a conhecida Lei das Aguas, em 1997. A bacia do Tibagi compreende uma área de 24.900 km2, população de 1.549.000 habitantes, e envolve área de 46 munícipios. Entre os municípios conhecidos e de maior porte na bacia estão localizados Londrina próximo a foz, Ponta Grossa nas nascentes e na sua parte mediana Ortigueira, onde esta sediado a Industria Klabin. A bacia desde 1985 tem sido objeto de estudos pela JICA, pela UEL – Universidade Estadual de Londrina, entre outras, que proporciona bons resultados quando avaliada ambientalmente. Após a Lei das Águas e promulgação da Lei Estadual 12.726 de 1999 que instituiu a Politica Estadual de Recursos Hídricos e criou o Sistema Estadual de Gerenciamento de Recursos Hídricos, em 2002 foi criado o Comitê da Bacia Hidrografia do Rio Tibagi, o segundo comitê do Estado do Paraná, o que procurou melhorar a governança das águas, incluindo a experiência de longos anos do COPATI. Um dos aspectos relevantes para a governança das águas é a elaboração do plano da bacia com o acompanhamento e aprovação do comitê, o qual deve oferecer suporte a outros aspectos e instrumentos, os cenários para a priorização dos programas, com vistas e melhoria da qualidade e quantidade das águas. No período de elaboração do plano da do Tibagi, entre 2009 a 2013, a bacia foi palco de intensos debates por conta da implantação da usina hidrelétrica Mauá. No processo de aprovação do plano de bacia, consta a proposta de enquadramento e/ou reenquadramento dos corpos de água previsto na Lei estadual das águas, que o COMITÊ deve analisar e aprovar, levando em conta as regras e parâmetros estabelecidas na Resolução do Conselho Nacional de Meio Ambiente – CONAMA n0 357/2005, bem como na n0 430/2011 também do CONAMA, tanto quanto nas resoluções complementares do Conselho Nacional de Recursos Hídricos – CNRH, as n0 91/2008 e n0 140/2012. Anteriormente ao plano da bacia, todos os cursos de água do Tio Tibagi eram classificados pela Resolução n0 003/1991 da SURHEMA, a maioria dos cursos de água eram de classe 2 (rios como vida), exceto aqueles previstos como mananciais de abastecimento público como classe 1 (rios com vida). Somente um Ribeirão em Londrina encontrava-se em classe 3. No caso do Tibagi o debate foi intenso e possibilitou ampliar o governança das águas uma vez que ativou o interesse de segmentos em discutir a manutenção da qualidade das águas naquela importante bacia. A proposta de enquadramento apresentada pela Gerência da Bacia Hidrográfica do Tibagi (Agência de Bacia), na prática exercida pelo órgão gestor – o ÁGUAS PARANÁ – foi o de propor como meta para ser tingida em 2025, trechos de afluentes do Tibagi em classe 4 (rio sem vida), e ainda dividindo essa classe em 4A, 4B e 4C, subdividindo uma classe sem que tenha competência legal para realiza-la, sobretudo por se tratar de uma norma federal de competência do CONAMA. O debate foi intenso nos anos de 2015 e 2016, fazendo com que a proposta excluísse a classe 4 mediante a Deliberação n0 11 de 2016. Foram realizada audiências publicas em alguns municípios envolvendo participantes de todos os segmentos do comitê. Interessante mencionar que todos os pontos apresentados como classe 4 eram para atender os interesses de um usuário, no caso a operadora do sistema
SECA NO BRASIL: O HOMEM, A TERRA E A LUTA
Seca no Brasil: O Homem, a Terra e a Luta Por Ailton Francisco da Rocha[1] O “Quinze”, primeiro e mais popular romance de Rachel de Queiroz se refere a grande seca de 1915, vivida pela escritora em sua infância. O romance se dá em dois planos, um enfocando o vaqueiro Chico Bento e sua família, o outro a relação afetiva de Vicente, rude proprietário e criador de gado, e Conceição, sua prima culta e professora. “Vidas Secas” romance de Graciliano Ramos publicado em 1938, narra a história da retirada de uma família de nordestinos por causa da seca. Através da narrativa, o leitor entra em contato com o sertão e o sofrimento da família de Fabiano. O nordestino que vive na seca é retratado com sua fome e a necessidade de migrar pelo sertão. Muitos outros escritores e cantores populares registraram nas suas inspirações as agruras do nordestino diante do drama da seca. Seca é um fenômeno natural de desvio do clima de longo prazo. No entanto, é importante distinguir a seca da aridez e a seca de escassez de água. Aridez é uma característica permanente de um clima seco. Já escassez de água ocorre quando a humanidade usa mais água do que há disponível naturalmente, nos ensina Antônio Rocha Magalhães. A desertificação é uma degradação permanente da terra em áreas semiáridas e subúmidas secas. A seca e a escassez de água podem contribuir para a desertificação, mas as razões principais são o sobrepastoreio, o aumento da frequência de incêndios, o desmatamento e a extração exagerada das águas subterrâneas. Todos estes elementos estão presentes no Nordeste do Brasil, uma região cada vez mais sujeita aos impactos exacerbadores das mudanças climáticas. Acontece aqui o que se convencionou chamar de “ciclo hidro-ilógico” uma expressão criada pelo Professor Donald Wilhite, da Universidade de Nebraska. Na verdade, a seca e a semiaridez são componentes permanentes do cenário do interior do Nordeste. São as atividades humanas que precisam se adaptar às condições do Semiárido e não o contrário. Até agora as respostas governamentais têm sido reativas: decide-se o que fazer quando uma nova seca acontece. Essa situação precisa mudar. O Brasil precisa caminhar em direção a uma política proativa para o enfrentamento dos impactos da seca, que consiste num marco orientador composto de três pilares: monitoramento e previsão/alerta precoce; avaliação de vulnerabilidade/resiliência e de impacto e mitigação e planejamento e medidas de respostas. Eles correspondem a instrumentos de uma política de preparação para a seca. A gestão de secas no Brasil necessita avançar de uma abordagem de gestão de crise para uma abordagem baseada na gestão de risco. Isto resultará na redução de custos e de impactos sociais e econômicos associados às secas. [1] Advogado, Engenheiro Agrônomo, Escritor e Superintendente de Recursos Hídricos da Semarh/SE.