Integração entre a gestão e a governança dos recursos hídricos com as do meio ambiente: utopia ou realidade? *

Título: Integração entre a gestão e a governança dos recursos hídricos com as do meio ambiente: utopia ou realidade?* *Artigo elaborado por: *Daniela Maimoni de Figueiredo – Professora e Pesquisadora Associada […]

Título:

Integração entre a gestão e a governança dos recursos hídricos com as do meio ambiente: utopia ou realidade?*

*Artigo elaborado por:

*Daniela Maimoni de Figueiredo – Professora e Pesquisadora Associada do Programa de Pós-Graduação em Recursos Hídricos/UFMT e Pós-Doutoranda UFPA/Unemat; *Priscila Marcon – Doutoranda no Programa de Pós-graduação em Ciências Ambientais e da Universidade Federal de São Carlos e *Solange Batista Damasceno – Doutoranda em Ciências do Ambiente e Sustentabilidade na Amazônia – Universidade Federal do Amazonas (UFAM)

Desde a publicação da Política Nacional de Recursos Hídricos em 1997 (Lei Federal nº 9.433), foram criados instrumentos, normas, instituições e colegiados específicos para tratar dos recursos hídricos do país. Os órgãos gestores públicos, as agências de água/bacias e os foros de participação social compõem o Sistema Nacional de Gerenciamento dos Recursos Hídricos (SINGREH), que contempla ainda os sistemas estaduais.

Em vários aspectos, o funcionamento do SINGREH é independente do sistema de gestão ambiental, apesar da Lei nº 9.433 ter como uma das diretrizes “a integração da gestão de recursos hídricos com a gestão ambiental”. Essa integração encontra-se também implícita em      outros itens e capítulos dessa lei, especialmente quanto à adoção da bacia hidrográfica como unidade de gestão e, além disso, pela óbvia razão de que a água é parte indissociável do meio ambiente e como recurso essencial nas atividades humanas.

Compreender como ocorre e o estado atual de integração entre recursos hídricos e meio ambiente não é tarefa fácil e faltam pesquisas nesse sentido. Nesse breve artigo, abordaremos alguns pontos de integração já existentes e os que precisam ocorrer ou que tiveram recente ruptura, buscando apontar as causas e consequências desse processo, ainda em construção.

Primeiramente, propomos dois componentes básicos de integração entre recursos hídricos e meio ambiente, que são correlatos entre si:

  • Componente da Gestão e da Governança: integração dos entes dos sistemas de gestão de recursos hídricos e de meio ambiente quanto aos processos técnicos e políticos, implícitos na tomada de decisão, na elaboração e implementação de normas e instrumentos de gestão e na integração com outros setores. Dentre os principais exemplos de integração que ocorre entre o setor de recursos hídricos e meio ambiente nesse nível, podemos citar, respectivamente:
  1. Instrumentos de gestão: elaboração e implementação de Plano de Recursos Hídricos/Bacias Hidrográficas integrado ao Zoneamento Econômico-Ecológico (caso exista), bem como ao Plano Diretor dos municípios (não faz parte diretamente de ambos sistemas, mas também é um instrumento de planejamento dos recursos hídricos e do meio ambiente); Enquadramento dos corpos d’ água e Outorga de uso da água com propostas, critérios e regulamentação baseados na Resolução nº 357/2005 do Conselho Nacional de Meio Ambiente, bem como no Zoneamento (caso exista); ação de fiscalização e licenciamento ambiental dos órgãos gestores baseadas nos instrumentos de recursos hídricos existentes (Plano, Enquadramento, Outorga e Cobrança pelo uso da água); ação de educação ambiental conjuntas.
  2. Representação do governo, sociedade civil e setor privado em colegiados em âmbito federal e estadual: membros da área ambiental e dos recursos hídricos com assento nos conselhos dessas áreas; membros do setor ambiental com assento nos comitês de bacia hidrográfica (CBHs); e membros do setor de recursos hídricos com assento nos conselhos de unidades de conservação, pesca, floresta, entre outros existentes.
  3. Órgãos gestores únicos: nos Estado em que os órgãos gestores de meio ambiente e recursos hídricos não forem os mesmos, regulamentar para ampliar a integração dos processos de gestão e governança entre os sistemas.
  • Componente da Bacia Hidrográfica: onde a integração bio-físico-química do complexo terra-água é inerente ao funcionamento da bacia hidrográfica e indissociável das atividades humanas; e onde os efeitos das atividades humanas dependem das condições naturais, culturais, tecnológicas, políticas, econômicas e históricas de ocupação e usos da terra e da água na bacia, inclusive do grau e qualidade da integração do Componente 1-Gestão e Governança.

Com relação à efetiva integração no Componente 1, alguns avanços já ocorreram,      mas ainda há lacunas e melhorias a serem discutidas, analisadas e implementadas, em particular quanto aos processos de governança transversais à gestão. A integração entre os instrumentos de gestão ainda possui falhas como, por exemplo, quando um instrumento é elaborado no mandato de um governo e em um novo mandato não é implementado em parte ou na sua totalidade, com valores e prioridades distintos do governo anterior. Outro exemplo, refere-se ao poder de adequação dos instrumentos aos interesses de forças econômicas e políticas hegemônicas na bacia ou aos interesses políticos partidários e não em benefício da coletividade ou da sociedade de uma forma geral.

As representações cruzadas nos diferentes colegiados federais e estaduais (Componente 1b) vêm demonstrando não ser suficiente para garantir a integração na gestão hídrica, tanto em nível local, quanto nacional. Falhas de comunicação e de conhecimento técnico, legal e institucional entre os setores são alguns dos fatores que precisam ser avaliados para ampliar o grau de integração entre meio ambiente e recursos hídricos.

A ideia de ter um único órgão gestor para os setores de meio ambiente e de recursos hídricos (Componente 1c), favorável à integração, é inversa à experiência emblemática em âmbito federal nos últimos quatro anos. A mudança de todo o sistema de recursos hídricos do Ministério de Meio Ambiente para o de Desenvolvimento Regional, de janeiro de 2019 a janeiro de 2023, representou uma ruptura e o predomínio de valores pragmáticos, econômicos e neoliberais na gestão das águas, em detrimento de uma visão integrada com o meio ambiente e todos os demais setores correlatos. Nesse período, estavam ligados também ao MDR os setores de irrigação e saneamento, caracterizando conflitos de interesse entre órgão gestor/regulador e setor usuário numa mesma pasta, além de ter ocorrido uma menor participação social no Conselho Nacional de Recursos Hídricos, característico de políticas neoliberais.

Por outro lado, alguns Estados optaram pela separação dos órgãos gestores de meio ambiente e recursos hídricos, mas são escassos estudos que comparem com o modelo de governança em um único órgão para ambos setores. Empiricamente, percebe-se que a integração depende muito mais da existência de articulações e processos de governança inter e intra setorial, do que da separação das pastas, uma vez que um único órgão gestor não é garantia de integração na esfera estadual.

Observa-se que o Componente 2 refere-se aos processos naturais e antrópicos na bacia hidrográfica, que são naturalmente integrados e indissociáveis e dependentes de vários fatores, inclusive do grau de integração do Componente 1. A seguir são apresentados alguns exemplos de como ocorre atualmente essa integração e indicadas algumas lacunas existentes:

Hidrelétricas: requer uma série de licenças e outorgas, que incluem os setores elétrico, de meio ambiente e de recursos hídricos, desde o inventário até a operação ad continuum. No entanto, há pouca integração institucional e, menos ainda, participação social, inclusive dos CBHs, nos processos de tomada de decisão. A participação se restringe à audiência pública e reunião do conselho de meio ambiente para aprovação dos estudos de impacto ambiental. Além disso, é recente a abordagem da bacia pelas empresas hidrelétricas, que perceberam (não são todas que incorporaram esta perspectiva) a importância de proteção das nascentes e matas ciliares para garantir água em qualidade e quantidade para a geração de energia e aumento da vida útil dos reservatórios.

Mineração: também é um setor que requer uma série de licenças e outorgas, incluindo as temáticas de meio ambiente e de recursos hídricos. Nesse caso, assim como no setor elétrico, há pouca integração institucional e participação social. Tanto as grandes como as pequenas mineradoras, inclusive garimpos ilegais, causam elevados impactos negativos e sinérgicos nos ecossistemas aquáticos e terrestres, que afetam a bacia hidrográfica a jusante. A mitigação e recuperação requer uma visão sistêmica da bacia, das interações terra-água e dos aspectos socioeconômicos, tecnológicos e históricos/culturais. A priorização do aspecto econômico tem levado a uma série de tragédias socioambientais no país, a exemplo do rompimento das barragens de Mariana e Brumadinho em Minas Gerais e dos garimpos ilegais na Amazônia.

Agropecuária em larga escala: é o setor que mais ocupa terras e o maior usuário da água no país, mas com menor regulação e com baixa participação social nos processos decisórios, em relação aos setores citados nos itens anteriores, à exceção da aprovação de licenças ambientais nos conselhos de meio ambiente dos estados para desmatamento de grandes áreas. Pouco se discute sobre a agricultura nos CBHs, exceto quando surge algum conflito pelo uso da água na bacia. A retirada de extensas áreas de vegetação natural para plantio de monoculturas de grãos e pasto em grandes propriedades rurais, reduz a infiltração da água da chuva no solo e a evapotranspiração, aumenta o escoamento superficial das águas pluviais e erosão do solo, que por sua vez causa assoreamento, alteração da qualidade da água, contaminação por fertilizantes e agrotóxicos nos corpos d´água. Além disso, o desmatamento de extensas áreas tem afetado a produção de chuva e o clima em larga escala espacial, demonstrando que além da visão integrada da bacia hidrográfica, é necessária uma visão e governança sistêmica global. Os exemplos mais recentes referem-se ao avanço da fronteira agropecuária sobre a floresta amazônica, entre os Estados de Mato Grosso e Pará, e sobre o cerrado na região conhecida como Matopiba, entre os Estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia, causando não apenas alterações no ciclo hidrológico, como também crises e conflitos por terra e água.

A estes exemplos, poderíamos acrescentar outros não menos importantes, como o uso da terra nas áreas urbanas, que, via de regra, ocorre historicamente com pouco planejamento ambiental, raramente considerando os aspectos naturais e o planejamento existente na bacia hidrográfica. Nota-se que esses processos também têm ocorrido praticamente sem participação social e integração institucional.

A integração da gestão e governança dos setores ambiental e de recursos hídricos (Componente 1), portanto, não é impossível ou utópico, mas uma meta a ser buscada continuamente, que deve, necessariamente, considerar que a integração entre meio ambiente e recursos hídricos ou, em termos mais amplo e integrado, entre terra e água, é inerente aos ecossistemas naturais das bacias hidrográficas (Componente 2) e inclui a ação humana como fator indissociável. De maneira geral, as falhas na integração no Componente 1 têm ocorrido devido às dificuldades em adotar uma visão integrada da bacia (Componente 2), por conta do funcionamento tradicional e fragmentado das instituições públicas e colegiados correlatos e devido aos processos de governança, que favorecem determinados grupos de interesse em detrimento da coletividade.

Dentro deste contexto, os CBHs, enquanto entes de Estado e colegiados de participação social, com representantes dos segmentos governamental, da sociedade civil e dos usuários da água, são importantes agentes da integração meio ambiente/recursos hídricos em ambos componentes propostos neste artigo.

Os CBHs são a instância base do sistema de recursos hídricos, que, ao atuarem diretamente na bacia hidrográfica, evidenciam os problemas, conflitos e crises, que envolvem invariavelmente as complexas relações terra-água-atividades humanas. Para tanto, é imprescindível a esses colegiados uma ampla análise dos processos de governança com visão sistêmica da bacia, a exemplo do proposto no Protocolo de Monitoramento da Governança da Água do Observatório de Governança das Águas do Brasil (OGA-Brasil). Os indicadores desenvolvidos pelo OGA visam o aperfeiçoamento contínuo na integração interna, entre os segmentos dos CBHs, e externa, com outros setores e atores estratégicos, levando à redução dos processos de governança fragmentada e à ampliação da abordagem sistêmica da gestão na bacia hidrográfica.

O artigo também pode ser copiado aqui>>> Artigo_DMFigueiredo_PMarcon_SDamasceno_14_abril_2024_VERSÃO FINAL (1)

Abril de 2023.

OBS: Este é um artigo de opinião cuja responsabilidade é das autoras.

No âmbito do OGA foi criado um Núcleo de Pesquisadores (as), que definiu a produção de artigos como uma das tarefas deste para promover o debate sobre governança e gestão das águas no Brasil inicialmente no âmbito da rede do OGA.

 

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